Nem só de açaí e maniçoba é feito o Pará. O estado que em pouco mais de um mês irá receber o Fórum Social Mundial é também lar e objeto de análise de Lúcio Flávio Pinto.
Na 6a série, alguns amigos e eu tentávamos criar um grêmio estudantil em nossa escola, abrigo da tradicional elite belemense. Uma das atividades propostas foi um ciclo de palestras - que começou e terminou em um só convidado. Ele mesmo.
Estávamos em família na deliciosa pizzaria Xica da Silva, quando meu pai falou: "Olha, Mel, o Lúcio é um bom convidado pra você levar no Ipiranga". Tomei coragem e despejei o convite feito uma metralhadora. Muito educado, duas semanas depois lá estava ele, anunciando em pleno ano 2000 aos pré-adolescentes a 3a guerra mundial.
Grande defensor da Amazônia, dos direitos humanos e de um jornalismo ético e comprometido, Lúcio Flávio Pinto publica quinzenalmente o Jornal Pessoal, produção individual sem apoio publicitário, que sobrevive apenas com suas vendas avulsas.
Em uma cidade onde a grande mídia impressa - a saber "O Diário do Pará", de Jader Barbalho; e "O Liberal" da família Maiorana e afiliada da Rede Globo no Pará - está sempre às voltas com interesses políticos e comerciais, a única limitação do Jornal Pessoal é "a capacidade de se informar e de transmitir informações do seu redator solitário", pois lá só se tem "rabo preso com o leitor".
Hoje mesmo ganhei de minha tia avó a edição da primeira quinzena de dezembro, e coloco aqui a reportagem de capa, sobre os limites éticos do fotojornalismo. No texto são abordadas questões como o abuso da imagem e o diferente tratamento conferido de acordo com a classe social em que se encontra o abusado. Um bom complemento para essa discussão está na leitura do texto "A insustentável leveza do clique fotográfico" de Ana Flávia Sípoli.
Boa Leitura!
Fim da sangria diária?
Por Lúcio Flávio Pinto*
A escandalosa cobertura dada aos crimes pelos dois maiores grupos de comunicação do Pará provocou, finalmente, uma reação. A partir da ação proposta pelo Estado contra os abusos do noticiário, é possível que se estabeleça um padrão mais aceitável. A inércia anterior era o pior. Mas ainda falta muito para se chegar ao melhor.
O Estado do Pará, através da sua Procuradoria Geral, propôs, no dia 11, uma ação civil pública no fórum de Belém. Apesar de seu caráter de ineditismo e da sua importância, a grande imprensa a ignorou. O motivo é simples: o objetivo da iniciativa é impedir que os jornais Diário do Pará, de propriedade do deputado federal Jader Barbalho, e O Liberal e Amazônia Jornal, da família Maiorana, continuem a divulgar “fotos/imagens de pessoas vítimas de acidentes e/ou de mortes brutais e demais imagens que não se coadunem com a preservação da dignidade da pessoa humana e do respeito aos mortos”.
Argumenta a ação que essas fotos e imagens são utilizadas “de forma inadequada e lesiva aos direitos constitucionais da pessoa humana, das crianças e dos adolescentes, e aos valores éticos e sociais da família”. A petição foi assinada também por duas organizações da sociedade civil: o Movimento República de Emaús, fundado pelo padre Bruno Secchi, e a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos. Apenas um dos jornais diários, o Público, que começou a circular em Belém há menos de dois meses, não foi incluído na ação. Mas também não a noticiou.
A ação civil pública considera que os três diários vêm dando “excessivo e desnecessário destaque a imagens chocantes e brutais, sem qualquer conteúdo jornalístico, mas com intuito meramente comercial, banalizando o ser humano a ponto de tratá-lo como instrumento de aumento da vendagem de jornais, o que atenta contra diversos princípios constitucionais, especialmente a dignidade da pessoa humana”.
O principal objetivo dos autores é a “readequação das notícias e fotos/imagens publicadas nos jornais impressos, de forma que seja respeitada a personalidade e a dignidade dos seres humanos que são ‘fotografados’ e exibidos de forma desumana e degradante, com desnecessário destaque das imagens de mortes violentas”. A proteção se estenderia à sociedade como um todo, representada pelos leitores de todas as faixas etárias, “para que não mais sejam expostos a imagens atentatórias ao sentimento público e a relevantes valores constitucionalmente protegidos”.
O Estado alega que precisou reagir ao uso diário, na imprensa, de “imagens grotescas, sempre com forte apelo comercial”, como recurso usado pelas empresas “para vender mais jornais”. Com esse mesmo propósito, elas divulgam “imagens de cadáveres, de pessoas desfiguradas, principalmente de vítimas de acidentes de trânsito, de esfaqueamento ou de pessoas que foram linchadas nas vias públicas, muitas vezes sem nem mesmo confirmar a autenticidade das informações”.
Como exemplos são juntados exemplares do Amazônia Jornal, em cujas “capas chamativas” a publicação sempre estampa fotos de mulheres seminuas, “de forte apelo sexual e, ao lado, fotos de pessoas mortas, ou vítimas de acidentes ou mesmo de atos violentos”. Para o Estado, “o detalhe mais sórdido e cruel é que geralmente essas imagens são em close ou imagens ampliadas, o que choca muitos leitores e até mesmo transeuntes, ao passarem por bancas de jornais”. A postura editorial é a mesma de O Liberal e do Diário do Pará, observa a peça inicial da demanda.
Outro exemplo citado é a cobertura de um acidente de carro ocorrido no final das férias de julho deste ano, na estrada de Salinas, que matou oito pessoas, “sendo divulgadas em todos os jornais impressos imagens dos carros destruídos, imagens dos acidentados nos últimos momentos de vida e, o que foi mais impressionante: os jornais O Liberal e Amazônia Jornal estamparam a foto de um crânio carbonizado de uma das vítimas do acidente em questão. Por sua vez, o jornal Diário do Pará divulgou imagens em tamanho aumentado, das vítimas do acidente trajando biquínis, ao mesmo tempo em que esmiuçava detalhes sórdidos da tragédia”.
Esses são apenas dois exemplos “dentre milhares de outros”, diz a ação, que o julgador do feito poderia observar facilmente, “com a simples leitura diária dos jornais locais e, por amostragem, dos exemplares juntados aos autos”. Por isso, solicita à justiça que proíba imediatamente, através da antecipação de tutela, os jornais “de utilização e/ou divulgação de imagens/reportagens” com as características indicadas, além de obrigá-los a publicar em suas edições “textos e informações educativas sobre direitos humanos e cidadania”.
Requer ainda indenização por danos morais coletivos, cujos valores seriam revertidos ao Fundo Estadual de Direitos Difusos e Coletivos, “em virtude da exploração das imagens de seres humanos retratados em situações violentas, desumanas e degradantes, com propósito nitidamente comercial e popularesco”, que violam diversos direitos constitucionais. O juiz Marco Antônio Castelo Branco, da 2ª vara cível de Belém, para quem os autos foram distribuídos, ainda não deliberou sobre a matéria
Se condenadas, as duas empresas terão que pagar 500 mil reais de indenização por danos morais coletivos, valor a ser acrescido de juros moratórios e correção monetária a partir da citação. Para a eventualidade de descumprimento da ordem judicial, os autores pedem que seja fixada a multa de 10 mil reais por dia, para cada empresa, e por cada foto publicada. Também requereram a fixação do valor da causa, sobre o qual serão calculados os honorários advocatícios, em um milhão de reais. A ação é assinada pelo procurador geral do Estado, Ibrahim Rocha, e pelos advogados Bruno Garcia, da Emaús, e Marcelo de Freitas, da SDDH.
Nenhuma palavra nos dois jornais a respeito, exceto por uma nota na coluna de Mauro Bonna, no Diário do Pará. Ele se limitou a classificar a ação como uma tentativa de censurar a imprensa. A defesa das empresas deverá seguir essa linha de raciocínio: de que a interferência de terceiros sobre a edição do material jornalístico não é apenas indébita, mas ilegal. Viola a - só nesses momentos - sacrossanta liberdade de imprensa.
Ainda que fosse (embora não seja), os jornais receberiam um castigo merecido. Há vários meses, algumas pessoas, determinados blogs da internet e este solitário jornal vêm denunciando o tratamento hiper-sensacionalista da grande imprensa local nas suas “páginas de polícia” (literalmente). Os exemplos apresentados pela ação pública já foram tratados aqui e em outros lugares, infelizmente poucos, sem provocar a menor inibição na sangria desatada - noticiosa e visual - dos três diários da capital. Pelo contrário: eles se esmeravam em exibir corpos dilacerados, como se suas publicações se circunscrevessem ao âmbito restrito e especializado da medicina legal e a eles fosse indiferente o efeito dessa escatologia, à mostra nas bancas de jornal e apregoada pelos jornaleiros nas ruas da cidade.
Se há imperfeições ou impropriedades na ação proposta pelo Estado e as duas ONGs, é questão a debater em juízo. O pior foi a falta de iniciativa dos autores dos excessos e exageros, adotados com fins nitidamente mercantis. Diante do clamor público, eles deviam ter-se oferecido para o diálogo e o debate sobre a reportagem policial. Tentariam convencer seus opositores sobre suas razões ou, caso contrário, se ajustar a uma postura mais adequada.
Ao ignorar as críticas e solicitações, confirmaram, por via indireta, o que é evidente: o sensacionalismo como um recurso mercantil, levado ao extremo em função da disputa entre os dois maiores grupos de comunicação do Estado pelo consumidor de baixa renda. Atraído pelas histórias e imagens escabrosas, essa parcela da população se transformou em chamariz para os anúncios populares. Nesse segmento, que se tornou interessante pelas políticas sociais do governo federal, que aumentaram o poder de compra das camadas C, D e E, o Diário desbancou O Liberal. Daí o acirramento da concorrência pelo uso do noticiário policial.
A inércia geral foi interrompida pela ação judicial. Se ela é correta ou suficiente, é questão a provar. Sem dúvida, era necessária. O paroxismo sensacionalista dos três diários não tem paralelo na imprensa nacional. Nem exemplos do passado, de publicações especializadas no crime, como O Dia e Luta Democrática, no Rio de Janeiro, e Notícias Populares, em São Paulo, atingiram esse nível tão baixo. Nos dias atuais, cadáveres foram quase expurgados das páginas dos grandes jornais, que recorrem a outros expedientes, menos frontais. Um padrão como o da imprensa cotidiana de Belém não tem igual em nenhuma outra capital do país.
As duas empresas irão alegar que o caminho do inferno está repleto de boas intenções e que, a pretexto de coibir o exagero, a justiça acabará por estabelecer a censura, prévia ou posterior à prática do “crime de imprensa”, se a ação vier a ser acolhida. O risco realmente existe, mas se existe é porque os dois impérios de comunicação deixaram de lado os critérios éticos de edição do seu material jornalístico. Se os mantivessem, não teriam praticado os abusos, de forma tão acintosa e reiterada que acabou por provocar uma reação institucional, depois de ignorado o clamor social.
A cínica exibição de cadáveres contribui para que os personagens dessas histórias tristes acabem por considerar esse fato como normal. Se retrato de bacana sai nas colunas sociais, o lugar de pobre é como “presunto” nos cadernos de polícia. Não é pequeno o número de pessoas que buscam com volúpia essas páginas de sangue para ver as fotos dos mortos e identificá-los. Essa morbidez avilta individualmente e pode se transformar numa patologia social, como já está acontecendo.
Para os dois grupos, conceitos éticos em torno da pessoa humana deixaram de existir: o que conta é o efeito mercadológico dessa diretriz editorial. Mas ela só se aplica à população pobre ou àqueles que não têm vínculos políticos ou corporativos com as empresas jornalísticas. Compare-se não o noticiário sobre um cidadão qualquer, destituído de direitos para a reportagem policial, mas sobre o acidente de carro com oito moças. Elas eram da classe média, uma das quais, filha de uma senhora com acesso à principal acionista do grupo Liberal, Déa Maiorana (à qual recorreu para estancar a hemorragia jornalística, logo após a publicação no jornal da foto da cabeça carbonizada da jovem que dirigia o Astra). Mas como a história foi chocante e nela não havia componentes restritivos aos interesses comerciais da empresa, os jornais se lançaram sobre os fatos com a voragem de predadores.
Diferente foi o tratamento dispensado ao assassinato do diretor jurídico dos Supermercados Líder. A imprensa noticiou os fatos, como tinha que fazer (sob a pressão atual, já não pode simplesmente escondê-los, como reiteradas vezes aconteceu no passado). Mas foi discreta e atenciosa. Nenhuma foto frontal, apenas detalhes - e à distância. Aceitou as limitações impostas pela família, que tinha esse direito, e assim agiu certo.
Mas aceitou demais a versão oficial da polícia - e aí agiu errado, já que muitos questionamentos foram feitos a esse enredo e circulavam em vários ambientes, aos quais os jornalistas têm acesso. A cobertura desse crime deixou bem claro que os jornais podem tratar de qualquer tema com competência e sem violar os direitos individuais, desde que queiram proceder dessa maneira, jornalisticamente, prestando contas à opinião pública. O problema é que jamais se preocupam com essas normas quando no meio da trama há apenas gente do povo. Aí instala-se o circo.**
Se foi quase sempre mais ou menos assim ao longo da história da imprensa, se tornou exageradamente (e exatamente) assim (e bem pior) na imprensa do Pará. Tanto por culpa dos seus dirigentes, insensibilizados para a função social da sua empresa, como dos jornalistas. Eles se tornaram muito pressurosos em acatar as determinações superiores e relaxados ao extremo em relativizá-las pelos compromissos éticos da profissão. Jornalista cumpre ordem e ponto final. Não tem nada a ver com as decisões sobre o que vai sair ou não, e como sairá. As redações viraram um solilóquio anódino, quando não um cemitério de individualidades. Prevalece o coletivo do consentimento, a unanimidade da insensibilização, o desinteresse pelo que existe antes e depois da informação.
Quando a doença individual se torna coletiva, como acontece com a reportagem policial da imprensa diária paraense, a falta de uma ação é o pior que pode haver. Esse pior, felizmente, acabou. É a hora de cada um se interessar pela demanda e dar sua contribuição para que a situação mude - para melhor. Pior, é quase impossível.
*Lúcio Flávio Pinto é jornalista e sociólogo paraense, autor da publicação quinzenal "Jornal Pessoal - A Agenda Amazônica de Lúcio Flávio Pinto".
**Grifo meu
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