Uma das razões por ter criado na Universidade de Brasília, há cerca de 15 anos, um projeto que veio a ser apelidado de SOS-Imprensa – e que perdura, na forma de extensão – foi a freqüência com que pessoas vinham relatar frustrações quando de tentativas de ser ouvidas para darem sua versão dos fatos, especialmente quando se sentiam injuriadas, difamadas e caluniadas. Ou simplesmente para encontrar alguém disposto a emprestar uma orelha humanitária, sensível à dor de quem teve a imagem “queimada”.
Desde então, venho defendendo a ideia de que o Brasil precisa de uma instituição, simétrica ao que é o Conar para a publicidade, para servir de intermediação consensual de reparação de danos morais e, se for o caso, de danos materiais derivados da imprensa. Seria um dos Meios de Assegurar a Responsabilidade Social (MARS), no caso, aplicado à mídia brasileira.
Existem MARS no mundo inteiro, desde conselhos de comunicação ou de imprensa a uma modalidade recentemente criada no Uruguai, uma ouvidoria pública especializada, passando pela Press Complaints Commission, da Inglaterra, onde até os príncipes e celebridades vão se queixar e, não raro, obter indenizações. Cheguei a orientar bolsistas de iniciação científica e de extensão que aceitaram o desafio de imaginar como seria esse “Procon da mídia”, embora a possibilidade de vir a ser criado no Brasil um ente dessa natureza seja remotíssima, pois isso será imediatamente qualificado como a volta da censura.
Causa própria
Certa vez, ao participar de uma mesa num evento promovido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, chegou a minha vez de falar e o meu assunto era a pesquisa (“Formas de apoio aos usuários da imprensa”) sobre “controle social da mídia”. Ao pronunciar essa frase, fui advertido por um deputado: “O único controle que a mídia deve ter é o controle remoto”. Essa reprimenda me soa até hoje como uma lição de que a clássica Teoria Libertária da imprensa ainda reina absoluta, a despeito de uma outra, a Teoria da Responsabilidade Social, não por acaso contraponto que alimentou um debate fervoroso, jamais encerrado nos Estados Unidos, desde a década de 1920, e que teve entre os seus próceres nomes como Walter Lippman (libertário) e John Dewey (responsabilizador).
Lippman era cético em relação à capacidade de o cidadão comum exercer uma reflexão crítica a partir do seu estoque de informações midiatizadas. Dewey não só era otimista quanto a essa possibilidade, como era defensor de uma parceria entre a imprensa e as comunidades, proposta que veio a ser o embrião do civic journalism norte-americano. Para o Brasil, o controle remoto seria um instrumento suficiente se tivéssemos uma oferta plural de conteúdos, sobretudo na TV, esmagadoramente dedicada ao besteirol.
Lippman se notabilizou também por defender uma “governança das elites”. Dewey, certamente, não queria ver o controle remoto da própria mídia nas mãos do grande capital e sim das comunidades. E tinha razão, veja-se o episódio recente envolvendo o News of the World, de Rupert Murdoch.
Inicialmente, o mencionado projeto de pesquisa (1996) se chamou “Formas de apoio às vítimas da imprensa”. Para não ficarmos na vitimologia (embora até haja uma Sociedade Internacional de Vitimologia, com uma seção brasileira), temos feito um esforço enorme por incorporar ao SOS-Imprensa – e ao conteúdo de uma disciplina chamada Ética na Comunicação – um repertório de casos exemplares de boa conduta da mídia, no jornalismo e na publicidade, uma saída para não ficarmos numa espécie de pedagogia maligna, que seria a de fornecer aos alunos e bolsistas apenas exemplos de quando a imprensa foi irresponsável ou quando a publicidade toma os consumidores por idiotas facilmente hipnotizáveis.
Numa das minhas primeiras frustrações ao tentar intermediar um caso em que uma família se sentia vítima do noticiário, ouvi do repórter – por sinal, um ex-aluno muito bem sucedido na profissão – a seguinte retaguarda: “Não vou abrir mão das minhas denúncias, pois a minha fonte é muito boa”. Mas não quis verificar o quanto a sua fonte era interessada em causa própria no assunto noticiado, por ter sido preterida pelo concorrente, que passou a ser detratado. Ocioso dizer que não houve audição para a “outra parte”.
Outra orelha
Desde então, centenas e centenas de casos se têm acumulado na memória do SOS-Imprensa, reforçando a hipótese de que a imprensa tem duas orelhas, mas uma delas é absurdamente desproporcional em relação à outra, quando se trata de uma denúncia. Talvez seja um habitus desse campo (Bordieu), mas então alguém teria de avisar ao público que prerrogativas constitucionais como a presunção da inocência e o direito universal de defender-se não são válidas quando se trata do jornalismo investigativo – na maioria dos casos “jornalismo sobre investigações” (denúncias repassadas), na expressão criada pelo jornalista Solano Nascimento em tese de doutorado (UnB – prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2010).
A hipertrofia da orelha aberta às fontes denunciativas amplia-se ainda mais quando a imprensa inteira, em bloco, no efeito manada, corre e inflaciona uma avalancha de acusações sem que o acusado tenha espaço, a não ser para um fenômeno que poderia ser apelidado de “picadinho de aspas”, qual seja: extrair das declarações do denunciado-bola-da-vez os trechos tautológicos para a sua condenação.
Esse tipo de torrente já foi objeto de reflexão no meio jurídico (Associação Nacional dos Procuradores da República) e ganhou a denominação de “publicidade opressiva”. Foi assim com os casos Escola Base, maestro Mozart de Carvalho (v. o filme Orquestra dos Meninos), Alceni Guerra e milhares de outros.
Adotando o outro pólo dialético, ou seja, a antítese, tenho ganas de que ao acionar o controle remoto possa encontrar subsídios para o exercício da outra orelha, a que está atrofiada por falta de espaços para escutar as vítimas dos erros, abusos e danos da mídia, ainda que seja para ouvir “mentiras sinceras” (Cazuza, Maior abandonado), por vezes risíveis, como aquela pérola dos “anões do Orçamento” – “Deus me ajudou e eu ganhei várias vezes na loteria”. Mas, dentre os “anões” havia um deles, Ibsen Pinheiro, que um dia deu-se ao trabalho de apresentar à sua família o repórter-autor da reportagem que por pouco não dizimou por completo a sua carreira política. Foi nessa intimidade do lar que o “profissional” pediu desculpas, claro, alegando que tinha sido levado ao engano por uma fonte do Palácio do Planalto. Como haveria de duvidar dela? Por coincidência, essa fonte apareceria num famoso vídeo que ilustraria o “escândalo do mensalão”. Ou seja, por vezes, é preciso investigar a fonte e não somente a quem ela denuncia.
Dossiê ignorado
Certa vez, fomos procurados por uma jornalista, ela própria, e toda a família, vítima do noticiário. Um parente dela havia sido assassinado numa emboscada no interior de Minas. A família do atirador privava da amizade do único dono de jornal do município. O que fazer? Saíra uma versão culpando o morto de ter provocado a ira de seu executor. Não houve serventia na informação de que a Lei de Imprensa (em vigor, na época) protegia a memória dos defuntos.
Doutra feita, um advogado me apresentou um dossiê de quatro mil páginas sobre um caso em que ele era acusado de se apoderar da fortuna de um órfão. Jamais conseguiu espaço para réplica e preferiu, em lugar de um direito de resposta (por via jurídica), embolsar indenizações obtidas em onze processos contra empresas e jornalistas. Não por causa do dinheiro, confessou-me, mas por não acreditar que alguma tecla de controle remoto voltasse a fita, apagando o que amargurou ao longo de décadas em termos de reputação destruída. (Durante os primeiros dez anos da sua má fama, sua banca só conseguiu dois clientes, amigos, que o fizeram por misericórdia, além de ter perdido a cadeira de professor numa faculdade do Distrito Federal).
Desde meados dos anos 1990, portanto, tenho acompanhado casos e casos em que as vítimas amargam a inexistência do espaço para o contraditório, e o que é pior: de alguma instância consensual para obtenção do salutar exercício da réplica. Mas foi precisamente na quinta-feira (4/8) que tive de ouvir, mais uma vez, talvez por ser jornalista e ensinar rudimentos de técnicas, éticas e estéticas da profissão, mais uma pergunta do tipo: “E, aí? Por que vocês não dão voz aos acusados?”
Havia comparecido ao lançamento do livro Tempos de inovações e mudanças: o papel de Edson Machado na educação e na ciência (450 páginas), organizado por Eda Machado (ex-esposa) e Célio da Cunha (Unesco e UnB), contendo 31 capítulos escritos por personalidades do mundo da educação, ciência e tecnologia que decidiram que era hora de documentar a importância que Edson teve para o país, durante as várias décadas em que atuou em numerosos cargos públicos e deixou na sua bibliografia incontáveis realizações – como a concepção e implantação do I Programa Nacional de Pós-Graduação (1974).
Edson Machado teve uma biografia imaculada e de renome – uma das maiores reservas técnicas do MEC, ao longo de vários governos, militares e civis – até o momento em que sua esposa, detentora de um vasto currículo e ex-diretora da Cátedra de Educação da Unesco no Brasil, decidiu fundar uma faculdade, o Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB). Seguindo fontes e indícios, repórteres chegaram a uma trilha bastante elementar, a de que se um parente abre um negócio, o aparentado em cargo público é suspeito natural de tráfico de influência e de tráfego de recursos desviados do Tesouro.
Durante a homenagem, alguns oradores fizeram questão de tocar numa ferida que, segundo as personalidades envolvidas, já deixou de ser mágoa, mas jamais deixará de ser uma frustração. Por que nenhum repórter quis ler o dossiê que prepararam para prestar contas de todos os recursos envolvidos no projeto do IESB? E por que não deram ouvidos quando os dois foram inocentados e objeto de pronunciamentos de apoio, como o que fez o então ministro da Educação Paulo Renato? À época, Edson Machado preferiu se ausentar da chefia de gabinete do ministro da Educação para não atrapalhar as investigações. Acabou abandonando o serviço público, no qual se desempenhou com brilho por 35 anos (32 deles no MEC e três no Ministério da Ciência e Tecnologia) e do qual nem um dossiê que lhe preparou o antigo SNI foi tão fulminante quanto uma suspeita veiculada por duas revistas semanais.
Hoje, numa cadeira de rodas, mas ainda com a altivez que sempre lhe marcou, Edson desabafou, nas páginas do livro que lhe deram ao próprio punho:
“O intrigante nessa história é que o dossiê, embora enviado a todos os repórteres setorialistas e a alguns chefes de redação da grande imprensa JAMAIS FOI UTILIZADO”(sic).
A conclusão de Edson Machado sobre “esse episódio” não deixa de ser desconfortante para quem ouve, e não só por orelhas de jornalista:
“Para mim, esse episódio deixa a marca de suspeição permanente em relação aos órgãos de imprensa. Concluo que o chamado ‘jornalismo investigativo’, teoricamente bem formulado, na prática nem sempre corresponde ao seu verdadeiro objetivo que é o de informar com precisão, ética e discernimento. É mais fácil aventar eventuais deslizes, e até crimes, do que comprová-los” (do livro mencionado, p. 58).
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