Por Luiz Martins da Silva
A
democracia é a forma mais agônica de governo, por ser a mais afeita à polêmica;
por ser, portanto, o regime que mais se sustenta numa esfera argumentativa, a
arena que sedia as disputas retóricas. E por quê a democracia é uma agonística?
Porque ágon, no grego, significa luta,
mas, sobretudo, a peleja na arte de comover e de convencer.
Discursar
é buscar sofregamente o fôlego, tal qual um enfermo, face às ânsias da morte,
recorre desesperadamente às últimas reservas de ar. Num contexto democrático, é
defender aos estertores o que se considera ser o melhor argumento, aquele que
irá orientar a melhor ação, por sua vez, voltada para o bem comum.
Invadir,
vandalizar, quebrar, arrebentar, queimar... Até seriam expedientes
democráticos, se esgotadas as instâncias e formas discursivas cobertas pela
Constituição, no que ela ampara todos os cidadãos em termos de liberdades: de
pensamento, expressão e manifestação, entre outras, sempre sabendo-se que a
mesma Carta cobra em responsabilidade o que assegura em direitos.
Lamentavelmente,
o Brasil tem vivido um tipo de anomia democrática, que consiste em
primeiramente barbarizar para, em seguida, traduzir os gestos de agressão em
agenda, linguagem, língua e discurso. E por que vandalizar faz sentido
coletivamente? Porque esta é uma forma de se ganhar visibilidade massiva; é a
garantia de que, imediata e sucessivamente, as cenas estarão na mídia, nas
redes sociais e à vista de toda uma população, em parte gratificada com a
violência, como se ela zerasse o acúmulo de frustrações, a principal delas,
pagar-se imposto de Suécia e ter serviço de submundo.
Os
quebra-quebras são uma forma não-polêmica de democracia. Sequer se dá chance ao
interlocutor de tomar conhecimento do teor das petições. Consta que este ano,
no Rio de janeiro, em um só dia foram destruídos ou incendiados 300 ônibus, em
protesto pela má qualidade do transporte público, ou, simplesmente por catarse.
Em Brasília, onde o metrô não comporta os seus usuários, um vagão foi depredado
exatamente por isso, por circular cheio demais. Em São Paulo, os metroviários
atingiram com a sua paralisação os cinco milhões de passageiros/dia. E a Copa
do Mundo transformou-se numa oportunista forma de chantagem, até por parte de
“servidores” públicos mais bem servidos em matéria de salários.
E
o que a imprensa tem a ver com tudo isso? Por que vale o clichê de que ela é
sempre a culpada de tudo? Talvez sim, na medida em que ela é por excelência a
instituição sede e garante da livre circulação das ideias, argumentos e
propostas. Ou, pelo menos deveria ser. Mas, para isso, não basta haver
efetivamente liberdade de imprensa, é preciso que haja maturidade cívica e, com
ela, saber-se que não à toa os jornais, revistas e emissoras de rádio e TV já
foram e ainda são chamados de tribunas.
O
Brasil é um país de liberdades ainda em construção. A comunicação como um
direito (Art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos), ainda está em
fase de amadurecimento. A primeira Conferência Nacional de Comunicação foi
sabotada pela grande imprensa, especialmente, pelos concessionários mais
poderosos da mídia eletrônica. No Brasil, o maior investimento publicitário é
para dar sustentabilidade ao entretenimento de retorno comercial. Educação e
Cultura ainda são, na mídia, categorias marginais. E quem delas cuida,
precipuamente, os veículos “públicos” (leia-se estatais), vivem à míngua. E não
têm como sair às ruas, quebrando e vandalizando, para exigir a sua cota.
Em
síntese, duas atividades ainda estão por ser implantadas, desenvolvidas e
consolidadas no Brasil: a primeira, chama-se literacia dos meios (em português
de Portugal, ou media literacy, em
inglês), ou seja, educação para a mídia; a segunda, leitura crítica dos meios (media criticism). Falta, entre nós,
tanto a educação cívica do cidadão, por meio da qual ele saberia que tem
direito à comunicação; quanto a educação cívica dos meios de comunicação de
massa, para que tenham ou recuperem a consciência de que eles são espaços públicos,
que hospedam uma “esfera pública”, isto é, o âmbito e o contexto pelo qual devem
perpassar as polêmicas que, numa democracia efetiva, devem sinalizar as
decisões em favor do bem comum.
Muito
se tem escrito nos meios acadêmicos sobre a centralidade da mídia, pois é esse
conjunto dos meios que faz a “mediação” do sentido nas produções sociais de uma
nação livre, democrática e plural. Ampliar o acesso dos meios de comunicação ao
cidadão e à sociedade é uma forma de se construírem a própria democracia e a
sua legitimidade. Do contrário, sem espaço para os seus argumentos, o público
se manifestará sob a sua forma mais empírica e até bruta, que é a multidão que
apedreja, queima e bota abaixo o pouco que já foi edificado.
Com
uma frequência muito estreita, a imprensa brasileira tem divulgado escalas
internacionais comparativas em que o Brasil ainda está muito mal localizado. Se
a Copa do Mundo fosse, por exemplo, em saneamento básico, o nosso país não
chegaria às quartas de final. Em desenvolvimento humano, estamos gravitando na
casa dos 60 e pouco desde a década de 1990. Mais recentemente, um agravante
veio se somar a essa conjuntura de atraso cultural: o fenômeno que se avulta,
se difunde e ameaça a todos que é o de se tiranizar a
própria democracia com manifestações predatórias de patrimônios e marcadas por
interdições de espaços públicos. Frágeis reféns: o povo e o regime que é
exercido em seu nome – a democracia.